As histórias por trás de toda história

Desde o início eu sabia que haveria um tipo específico de artigos onde eu traria reflexões inspiradas ou baseadas em filmes, séries, músicas e livros.

Porque sempre tive a impressão de aprender muito sobre a vida, pessoas e relacionamentos com essas coisas, com personagens, com histórias, com aventuras que eu não havia vivido mas de cujos louros eu poderia usufuir. 

Portanto, eventualmente, vou trazer uma abordagem específica, de alguma coisa que mexeu comigo, me fez ir além. Sabe aquele livro, filme, série que te deixa sem ar? Que acaba e você fica paralisado, atônito, com a cabeça a mil? Ou que você passa a semana toda pensando sobre? Então.

Essas coisas que a gente não consegue descrever, adjetivar com poucoas palavras, digerir em alguns minutos. Essas coisas que dá vontade de conversar a respeito, escrever a respeito. É disso que se trata.

Assim, está oficialmente lançada a série Coisas que São. Adianto que minha pretensão não é tentar ocupar um espaço da crítica de cinema ou literatura. Mas sim usar histórias incríveis para falar daquilo que a fantasia entrega para a realidade. Afinal, dizem que a vida imita a arte, mas em algum ponto, ovo e galinha se tornam pontos de inícios e finais. 

Não é o que você está pensando!

Bem, eu não posso evitar estrear com esta obra confusa e genial, no meu ponto de vista. Preparem-se, porque vou compartilhar uma bolota intragável que consumi há alguns meses.

Uma bolota com nome, elenco, fotografia, produção e uma espécie de…trilha sonora. Posso dizer que foi um filmezinho bem do sem-vergonha, que entrou infiltrado na minha lista interminável. 

Como assim? Acontece que, uma vez, enquanto assistia a um vídeo ou série de trailers (ah! o ócio), apareceu o trailer de um filme que, na ocasião, me despertou atenção.

Tratava-se de uma mulher que tinha o sonho de cantar, mas como o marido não a apoiava ou entendia ela decidiu partir rumo ao sonho. Só que ela não cantava muito bem e o caminho parecia longo.

A partir daí, o que eu fiz foi o que qualquer pessoa faria: anotei e guardei o nome desse filme que me interessou tanto em um lugar impossível de perder.

E, adivinhem?! Eu perdi, lógico.

Até que me deparei com a sinopse de um filme e pensei que só podia ser ele.

Adivinhem, de novo? Não era, claro.


Mesmo assim, algo na sinopse do filme que não era me atraiu. Pensei: “Por que não?! Quem sabe um dia?”. Até que o tal dia chegou. Entre os milhares de itens da minha lista, alguma coisa me levou a descobrir este. E que bom. Meu instinto, mais uma vez, me presenteava com uma excelente oportunidade.

Foi sim aquele tipo de filme. Sabe? Que, quando acaba, deixa a gente boquiaberto, andando meio torto. Peito aberto. Em transe.

Demorei para “acordar” e passei dias pensando. Talvez dei sorte e o filme me pegou no momento certo, talvez simplesmente seja incrível e você precise ver.

Então, vamos falar, SEM SPOILER sobre…

Marguerite!

Para começo de conversa: Tudo em Marguerite não é.

Não era o filme que eu procurava e anotei no papelzinho. Mas gostou desse negócio de me enganar, e continuou não sendo. Marguerite não se trata de uma cantora desafinada na sociedade elitista da Paris dos anos 50. Não se trata de uma mulher rica que compra todos os seus sonhos e caprichos. 

Marguerite, talvez, se trata de um ser-humano cheio de posses que teve o azar de ter um sonho. Se você assistiu o trailer antes (como eu) não se iluda: não temos aqui uma comédia. 

Essa ficção, inspirada na história real da socialite Florence Foster Jenkins, não se trata de coisinha banal. Não dá para pôr na sessão da tarde – ninguém suportaria mais do que Edward Mãos de Tesoura por lá. Aqui, temos uma verdadeira obra-prima da frustração, da crença, da entrega.

Marguerite trata das paixões que não sabemos gerenciar mas sem as quais jamais conseguiríamos viver. Todas elas. Físicas, emocionais, espirituais. Nossas obsessões, nossas crenças, nossas demandas mais urgentes e excruciantes.


Marguerite trata da solidão que encontra fim na fé e na arte. Marguerite, a personagem, por sua vez, não é uma cantora desafinada. Ela é uma idealizadora. Uma artista presa num corpo e numa condição.


Em resumo, não se trata de um romance nem propriamente de uma crítica, mas também não é um drama. Sequer é um drama. Como você vê, é difícil até para mim falar sobre Marguerite.

Mas vou seguir tentando, mencionando alguns tópicos que falam do que Marguerite é – sem simplificar a sua vida. Porque Marguerite é complexo demais, e falar a respeito de forma simples seria, no mínimo, um desperdício.

 

Detalhes, inconstância, não-pertencimento e o encatamento de cada essência – como a vida real!

     

A obra, acima de tudo, conta a história de pessoas que se conectam pela mesma razão: vagam presas, limitadas, condicionadas, ocultando o melhor de si.

Marguerite, o longa, não parece ter a pretensão de colocar em caixas de heróis e bandidos, bons e maus. Não se preocupa, inclusive, com atos catastróficos.

Marguerite se trata dos detalhes. Do olhar que abaixa. Das sobrancelhas que expressam. Do barulho que parece um gato miando, escondido em algum lugar. Das cenas da caça que não teve chance. Do cuidado e da complexidade que só quem vive pode degustar.

Ora ela é louca. Ora ela é adulta. Ora é criança. Ora é ambiciosa e audaz. Ora inocente. Ora profunda, ora superficial. Ora cheia de orgulho, ora sem orgulho nenhum.

Ela é, por fim, humana. Ela é como eu e você. E por isso que se encaixa tão bem. O não-pertencimento é difícil para Marguerite como para todos nós. 

Podemos até dizer, por exemplo, que a abordagem de um casamento fracassado e de fachada é importante na trama. Mas, de novo: é mais que isso. 


É a manifestação da complexidade das relações, do status, das normas sociais subjetivas e como isso afasta ao mesmo tempo que aproxima.

 

Claro que, no olhar ocidental, moderno e evoluído (ainda bem) somos capazes de enxergar em George um cretino egoísta. Mas se realmente nos esforçarmos em nos tornarmos empáticos, veremos também um homem carregado de medos e crenças que, nem assim, impedem de preservar um genuíno carinho pela esposa.

Um carinho, bem verdade, freado pela sua própria incapacidade de se aceitar que, por sua vez, reflete-se na flexibilidade em aceitar aquilo que sua mulher representa: a extravagância dos que seguem autênticos.

Já, em Madelbus, podemos escolher ver um homem misterioso, ora assustador, ora apaixonado, ora obcecado. Ora bondoso e generoso. Ora capaz de fazer o que for necessário para preservar sua protegida.

 

A velha necessidade do julgamento e a urgência atemporal da empatia 

Falamos de George e Maldebus. Mas também Marguerite tem seus excessos.

Como poderia ser diferente? Rica, desde sempre e conduzida apenas a casar e exercer um papel social, seria natural que se buscasse caminhos e caprichos que distraíssem a personagem.

A verdade é que cada um de nós tem suas próprias manias. Precisamos delas, de algum jeito estranho. Apenas adequamos essa necessidade (de ter manias para chamar de nossas) à realidade em que vivemos, buscando um meio de torná-las possíveis.

Criamos estas manifestações de singularidade por diversas razões e ás vezes nem as percebemos. Mas elas não surgem do nada e sempre têm uma construção, um ponto de onde ela se originou e tornou-se indispensável. Inclusive, coicidentemente, falei sobre isso aqui recentemente.

Assim, mesmo quando notamos estes padrões, não os assimilamos como manias. São hábitos, são nosso modo particular de ser no mundo. As do outro sim, facilmente podem ser interpretadas como manias, frescuras, bobagens.

Então: não. Comer apenas comidas brancas não é uma mania para Marguerite. Não é uma frescura. É um objetivo. É a maneira pela qual ela ameniza uma dor latente de não ser tanto quanto sente que pode, que deve, que nasceu para ser.

É um modo, talvez, de sentir que tem algum domínio sobre sua vida: ela não controla o que sai de sua boca, mas este pode ser sua maneira sutil e estranha de decidir o que entra.

Também é possível concordar que é incômodo o esforço em mostrar esse lado doloroso de se ter tanto dinheiro a ponto que ninguém estar disposto a ser honesto. O discurso, embora válido, não faz mais sentido: somos minorias demais.

Mas para garantir que tenha ficado claro: também não se trata disso. Sobre riqueza ou pobreza ou os méritos de cada lado. Se trata de empatia. De seres-humanos. De acreditar tanto nos sonhos que ninguém ousa arrancar isso de você.

Se trata de um homem que se entrega ao amor de uma mulher brilhante e, ao mesmo tempo, vulnerável. De um garoto que não aprendeu a crescer e precisa de fugas. De uma talentosa voz incapaz de lidar com a entrega . Esse é o entorno de Marguerite. 

Sobre ela, interpretada magnificamente por Catherine Frot, há algumas características fixas e fáceis em nossas expectativas: cantora, velha, rica, desafinada.

Mas ingênua, jovem, pura, fresca, leve, solta também são adjetivos que facilmente podemos destilar para Marguerite e que provavelmente são mais adequados à sua essência.


Um exercício de paciência

Além de tudo, Marguerite tem seu ritmo. É um filme lento. Cheio de pausas. Com cenas que a princípio não fazem sentido e com espaços que demoram.

Marguerite é sim um exercício de paciência. Mas não nos vence pelo cansaço. Nos vence pela coragem.

Assim como a própria personagem, que ao contrário das primeiras suposições vai, aos poucos, mostrando que não conquista as pessoas que seguem ao seu lado por causa do dinheiro, mas porque os inspira. Ela os ganha pela pureza e autenticidade sem ser arrogante, boçal, prepotente.

Embora rica, embora profundamente comprometida há anos com sua prática errática, ela escuta. Ela está disposta. Ela ouve. Mas ninguém quer lhe dizer o que ela precisa. E disso ela não tem culpa.

Marguerite, com toda essa paciência, me impactou. Me ensinou coisas para as quais eu não estava totalmente preparada. Algo em Marguerite parece um soco em algum lugar no esôfago.

Depois de engenhosamente construída como mito, como rainha, como musa inspiradora.

Manipulada de forma mais cruel que personagens de um livro, que ganham sua própria vida aqui, ainda deixa um poderoso alerta: cuidado para não estar vivendo o sonho de outra pessoa. Afinal, para Marguerite isso nunca foi tão verdade.

Entregou olhares, e chegadas que nunca vieram. Driblou meu senso precipitado e falho de julgamento e me mostrou que há muito mais quando estamos dispostos a ver as matizes. Lembrou de como cada um é, do seu modo, essencial para toda história. E me fez pensar nas inúmeras histórias escondidas atrás de cada um.

Por isso tudo, pela primeira vez, um filme exigiu de mim paciência, sem me irritar.

 

O que podemos aprender

Como eu disse, é possível extrair muito aprendizado de praticamente tudo que vivemos, vemos, sentimos. E a ficção tem um enorme potencial de fazer issso. Portanto, as coisas mais importantes que Marguerite me trouxe foi a lembrança, não necessariamente nessa ordem, de que:

  • Nós somos os únicos responsáveis por acreditar nos nossos sonhos.
  • Alguns sonhos são maiores que nós. Outros, não são sonhos. 
  • É importante descobrir o que, de verdade, nos transcende e o que é fuga, válvula de escape. 
  • Autoestima é ótimo, mas  o ego e a vaidade podem cegar e nos confudir.  
  • Quando olhamos para alguém, só vemos a superfície, sempre há mais. Muito mais. 
  • As razões do outro são facilmente convertidas em manias, as nossas, em particularidades. 
  • Sinceridade é importante, mas deve ser aplicada com gentileza. 
  • O bakcground de cada um pode ser surpreendente, mas descobri-lo exige cuidado.
  • Seres-humanos são complexos e, na grande maioria das vezes, só estão tentando fazer o melhor que podem
  • A intuição e sensibilidade aos detalhes podem ser cruciais na tomada de decisões.
  • Ingenuidade, vulnerabilidade e fé são agentes eficazes em conectar pessoas. 

Bom, imagino que, se eu assistir novamente, a lista aumentaria. Mas acho que está de bom tamanho. 


PRÁTICA

Para não deixarmos que minhas maluquices morram na praia, vou buscar sempre deixar uma prática: uma sugestão de algum exercício que me trouxe um bom resultado, fruto do instinto, das leituras ou das conversas com outras pessoas.

Bom, temos e não temos algo complexo para a prática de hoje. Afinal, depois da geléia mental do meu cérebro, não poderia encerrar diferente. Então, vamos lá.
1. Que mentiras você tá contando para si mesmo? Escreva em uma folha tudo aquilo que vêm à sua mente, avalie cada tópico, selecione um mais alarmante, e guarde.
2. Analise como você informa às pessoas sobre suas expectativas e sentimentos e reflita sobre como interage com a sinceridade: Você tem medo de falar a verdade? Ou fala verdades demais? Como isso afeta as pessoas ao seu redor? E a você?
3. Agora, investigue as duas respostas e trace uma meta que melhore sua relação de verdade com o outro. 
Ah! Se tiver alguma sugestão, nos envie um e-mail!

 

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Quatro coisas que me salvaram

Constantemente lembro-me de como eu era um ser-humano mais bosta até poucos anos atrás. E como isso parece ter diminuído gradativamente conforme os anos, experiências, pessoas, conhecimentos e leituras (boas/bons e ruins) foram se passando.

Não estou dizendo que alguém com características semelhantes seja bosta (como as que mencionei aqui), nem que eu acredite realmente que deixei de ser meibosta.

Mas, olhando para quem sou agora e para tudo que concluí até então, só posso me sentir mais bosta mesmo, quando penso na minha eu de antes.

Como já falei muitas vezes, não posso garantir quando foi o momento estopim, se é que houve algum. Um momento exato da mudança, a única coisa, pessoa ou leitura que me tocou.

Mas se tem algo que eu posso fazer, é listar certas decisões que foram…hm, decisivas?! Não só na mudança de comportamento como um todo, mas também em relação à adoção de determinadas práticas extremamente importantes para que eu tivesse uma vida melhor, dentro daquilo que descobri como meus padrões.

É claro que, nesse sentido, eu teria muito mais pra falar, porque existe uma porção de coisas que me ajudaram/me ajudam. Mas nesse post vou me referir especificamente a coisas mesmo. Objetos, coisas palpáveis, sabe?

Ah! Elas acabaram, sem querer, vindo exatamente na ordem em que aconceram. Eu gostei da ideia e mantive assim. Então, vamos lá.

 

1. O violão

Ter começado a aprender um instrumento me trouxe benefícios pelos quais sempre serei gratas. O violão entrou num momento nada original da minha vida: a terrível adolescência.

Então, como muitos adolescentes, aos 14 anos eu havia me tornado incontrolável. Para mim e para os outros. Em suma, eu era uma adolescente completa.

Tinha crises imensas de choro, tristeza, raiva. E não só me sentia sozinha: eu era sozinha. Não tinha amigos (e juro que não foi falta de esforço) e, para fingir que tava tudo bem, costumava dizer a mim mesma que não precisava de ninguém.

Meu pai, que sempre foi meu herói e reduto de consolo, já não lidava tão bem com aquela menina histérica, dramática, teimosa e desobediente.

Eu não era mais a garotinha de cachinhos, olhar bondoso e parceira de todas as horas. Assim, cada “não” que vinha dele, era uma razão a mais para dificultar sua vida e torná-lo meu inimigo.

Eu quebrava coisas, batia portas (e algumas também quebraram um pouco, tamanha a força), dava socos na parede (antes mesmo de saber que as pessoas faziam isso nos filmes, como uma manifestação apaixonada e problemática da raiva), gritava com os outros sempre que algo dava errado e não sabia lidar com as dificuldades normais da vida.

Portanto, também seria quase dispensável dizer que eu passava muito tempo ouvindo Legião Urbana, Pink Floyd, Guns Roses, Metallica e Ramones no meu quarto, o tempo todo, já que:

  1. eu não tinha amigos;
  2. internet só depois da meia-noite, escondida (sim, amigos mais jovens);
  3. e escrever durante muito tempo dava dor nos dedos.

Então pensei: bem, quem sabe aprender a tocar violão pode propiciar uma nova atividade individual agradável para colocar no menu.

E a mudança foi rápida para mim. Aprender (ou tentar) a tocar violão me trouxe disciplina, dedicação séria a algo, comprometimento e principalmente, concentração.

Quem já tentou aprender um novo instrumento sabe que é impossível fazer sem concentrar-se. É preciso tocar muito agilmente as notas, mesmo nas músicas mais lentas ou “fáceis”, e trocar notas geralmente envolve um conjunto complexo de formação dos dedos, respiração, e contagem instantânea.

Só ali eu vi que aquele modo agitado e intempestivo de ser era prejudicial. Não só para alcançar meu objetivo de conseguir tocar pelo menos uma música inteira sem errar, como para todos os aspectos da minha vida.


A partir de então, foi mais possível entender porque meus pais faziam aquela expressão de que estavam prestes a me esganar (embora eu não admitisse para eles, claro).


Além disso, essa época também foi deliciosamente temperada por pessoas que, de certo modo, eram meus amigos. Nós ríamos juntos e ousávamos compartilhar uns com os outros fragmentos de nossos medos e preocupações.

Por mais curta que tenha sido aquela amizade, não posso dizer que não foi verdadeira. Éramos honestos e confiávamos uns nos outros, não tínhamos vergonha e, acima de tudo, buscávamos genuinamente ajudar-nos.

Precisei admitir que eu queria mais daquilo sim: ter amigos, pessoas com quem houvesse identificação de valores e com quem eu pudesse dividir um pedaço da vida.

Obs.: E…sim. Eu consegui tocar pelo menos uma música inteira, sem errar. rs e de vez em quanto brinco com outras!

 

2. O diário

Foi mais ou menos nessa mesma época, depois de ter percebido algumas coisas sobre mim mesma, que decidi retomar a ideia do diário (iniciada de uma forma bem grostesca, na infância, com letras e desenhos incompreensíveis).

Embora eu lamente ter abandonado a prática, tive diário por uns quatro anos seguidos. E foi transformador de várias maneiras.

A primeira delas é que eu notei que, ao falar livremente sobre meus sentimentos sem ser julgada, eu ficava muito mais tranqüila. Era como se um peso enorme saísse de mim.

Normalmente fazemos isso com os amigos, mas como eu não tinha muitos disponíveis (para não falar o óbvio), era uma opção bem interessante!


Eu escrevia realmente todos os dias. Podia esquecer de escovar os dentes ou decidir tomar banho só no outro dia, mas escrever no diário era um hábito tão automático como tomar água quando estamos com sede.


É claro que, antes dos diários eu já escrevia muito: poesia, textos em prosa, desabafos juvenis espalhados, entre outros tipos de conteúdo. Então, na ocasião, eu já tinha acumulado vários cadernos e folhas soltas, devidamente guardadas em uma caixa.

Porém, a escrita do diário, era totalmente diferente. Não eram como arrombos inspiracionais que duravam dias e madrugadas adentro, cheios de paixão, intensidade, furor, fluidez, velocidade e mãos tentando acompanhar pensamentos — que cessavam tempos depois.

Não. Eram geralmente serenos, estáveis, práticos. É inegável que havia toda a tragédia e perspectiva dramática de uma adolescente passando pelas transformações e frustrações naturais.

Mas ainda assim era uma atividade de cunho prático e funcional. Era perene e constante. Era como fazer um relatório minucioso para um professor exigente.

A segunda razão pela qual foi transformador é que, ao escrever, eu também acabava refletindo sobre os acontecimentos que estava relatando, sobre o que eu estava sentindo e de onde vinha.

Essas coisas não apareciam se eu apenas ficava pensando sobre elas. Pelo contrário, ficavam ainda mais confusas  e assustadoras.

Mas escrever sempre deixava as coisas mais claras, para mim e para os outros (sobretudo meus pais, que acabaram sofrendo com alguns “recadinhos” nada elogiosos meus).

Por fim, o terceiro modo com que isso me transformou é que…cara! Ler aquilo era sempre positivo. Seja porque eu dava muita risada (como quando eu lia coisas mais antigas, de meses ou anos anteriores), seja porque me permitia refletir a respeito, lembrar de alguns dilemas, dúvidas e inseguranças, pensar em novas perspectivas.

Não à toa, até hoje tenho esses diários e guardo eles com muito carinho. Ali está parte de quem fui, e muito da minha transformação ao longo dessa fase de “sobrevivência”.

Passei a abandonar a prática quando comecei a trabalhar e fazer um curso a noite. Depois veio a faculdade conciliada com o trabalho. Como costuma acontecer, outras coisas ganharam prioridade e “roubaram” aquele espaço importante do dia.

Como eu disse, sinto um pouco de arrependimento de ter deixado de fazê-lo porque, desde que parei, aconteceram tantas coisas na minha vida, que eu gostaria mesmo de tê-las relatado adequadamente, para lembrar, para me revisitar. Sabe?

Então, uma resolução bem recente foi tentar voltar a prática. Até adquiri um exemplar resumido (365 perguntas, por cinco anos), que é bem gostoso de responder e útil (já vejo as diferenças de um ano para o outro, por exemplo). Mas pretendo usar também o modelo raiz: todo dia, páginas livres.

Inclusive estou pensando em criar um modelo para facilitar alguns gatilhos que acho válidos registrar, como a questão de saúde, hábitos, dores e afins (sabe como é ne, a gente vai ficando veio e sentindo necessidade de resolver mais e melhor essas coisas).

Se você tiver interesse em ser avisado quando isso acontecer, informe abaixo seu e-mail! 


Também já testei um modelo para lá de prático e resumido, que achei muito interessante mas por alguma razão não funcionou muito bem comigo, porque acabo sendo bem genérica e acho legal algo menos restritivo.

Mas fica a dica para quem é mais objetivo: esse artigo explica bem direitinho e o método é super simples e barato.

 

3. A bicicleta

Cara. Minha relação com as magrelas começou bem turbulenta. Ganhei uma linda dos meus padrinhos amados, no aniversário de sete anos.

Mas só comecei a andar sem rodinhas depois de muito tempo (e de várias bicicletas adultas que meus pais tinham que comprar e colocar a rodinha, afinal eu era muito alta para as infantis).

Então, imagine você a cena. Eu e a galera da rua (ou seja, minha prima e os amigos dela, gentilmente compartilhados comigo) dando rolezão.

Eles andando sem uma das mãos, sem NENHUMA das mãos, subindo e descendo de degraus e meio fios, e eu. Super maneira. Na minha super bike adulta. De rodinhas. Eu achava ok. Mas ficava tentada a experimentar aquela sensação. Assim, todos tentaram me ajudar.

Meu pai, coitado, todo dia sugeria algo novo. Minha mãe incentivava com sorrisos e olhares confiantes. Minha irmã mais velha dava todas as instruções, didaticamente. Nada resolvia.

Eu estava determinada: “tudo bem, vou andar para sempre de bicicleta de rodinha oras, qual o problema?”. Veja, eu já estava com uns 13 anos.

Todo mundo que eu conhecia tinha começado a andar de bicicleta (sem rodinha claro, porque a rodinha nem era considerada como andar de bicicleta) no máximo, aos sete.

Quem andava de bicicleta, impreterivelmente tinha começado nessa idade e a rodinha sequer era mencionada. Basicamente, quem não tinha começado a pedalar aos sete, era quem não tinha interesse em pedalar.

Mas eu tinha. Eu gostava de pedalar. De rodinha. Óbvio. Chegou ao ponto de eu repelir a ideia de andar numa bicicleta sem rodinha. Até que um dia minha prima conseguiu. E eu sempre vou agradecê-la por isso.

Ela fez o que meu pai, minha mãe ou minha irmã não tinham coragem de fazer. Afinal, ela também era uma criança, mas ela era melhor que eu nisso: ela não tinha medo.

Se ela era capaz de botar barro e areia nos meus ferimentos com sangue, para “estancar” porque era “meio médica” e sabia o que tava fazendo, ela CERTAMENTE seria capaz de me dizer:

“Olha só, vou te jogar desse morro aqui e você faz tudo que eu te ensinei, ta bom? É fácil, tu vai conseguir” – Foi mais ou menos o que ela fez.


Provavelmente inspirada pelos vários exemplos (bons e maus sucedidos) de filmes e por alguma das propagandas da Caloi, ela tinha muita certeza de que aquilo iria funcionar.

Nem mesmo ficou pensativa quando sugeri que aquela rua, cheia de paralelepípedos irregulares e buracos, talvez não fosse a melhor opção.

Porque além de eu cair (como várias vezes já tinha acontecido) e me machucar pela queda em si, eu me machucaria ainda mais ao cair no meio daquelas pedras. Não. Para ela não tinha crise. Ia dar certo.

“Deixa de ser medrosa, já te ensinei tudo que você precisa, acredite em você, você consegue.” Por obra do destino, pelo meu apurado instinto de sobrevivência, e pelo fato de não ter muita escolha, deu. 

De alguma forma, fiquei naquela geringonça por incríveis trinta segundos! Cai logo depois, mas tudo bem. Foi com estilo e consideramos a empreitada bem sucedida. Fiquei tão confiante por aqueles segundos convictos que depois ficou fácil.

No entanto, após algum tempo, ela precisou se mudar para o Rio e, com isso, todos os “meus” amigos bicicletados também deixaram de fazer parte da minha vida. Cheguei a pedalar durante alguns verões, mas era uma atividade sazonal, embora agradabilíssima.

Até que, já crescida, e tendo abandonado até mesmo a sazonalidade da pedalação (afinal, no verão, para uma jovem, surgem várias outras atividades bem mais interessantes), voltei a pensar nisso. Mas não ao acaso.

Eu tinha recém saído de 1. um trabalho que me deixava ansiosa; 2. de uma experiência traumática e 3. de um estilo de vida irregular, sedentário e gastronomicamente tóxico (era normal almoçar coxinha de frango com muito azeite de oliva, ou pizza da padaria com muito azeite de oliva; e repetir essas riquíssimas refeições também no lanche, e ás vezes a noite).

Então, depois de passar por uma fase magra, alta, morena, atleta, corredora, bonita e sensual eu estava me sentindo um saco de banha, inútil, gordurento, com a pele horrível, com o cabelo opaco, com olheiras, cansada.

Muito pior do que quando eu só era gordinha por conta dos remédios que tinha que tomar por conta de um quadro alérgico.

Enfim. Por sorte, logo chegou o verão, e aproveitei para relembrar a estação mais quente do ano sob duas rodas, já que na época a maioria dos amigos que eu tinha feito estavam vivendo em outros lugares, tinham feito outros amigos, tendo outras vidas.


Foi um período maravilhoso, inteiramente meu. Andava por todos os lugares, via as pessoas, parava para fazer um lanche saudável na beira-mar, curtindo o sol e o vento, o peso da lua e das estrelas. Senti que era livre.

 

E chegava feliz em casa, sem nenhuma vontade de comer por impulso. Mas quando voltei para a “cidade” e para o meu novo emprego, cada dia que passava me dava mais saudade daquilo.

Eu tinha rapidamente voltado para um estilo de vida ansioso e nocivo, comendo muito, me exercitando nada, dormindo pouco e mal, ficando estressada com o trânsito e com a correria de tudo.

Então tomei algumas resoluções. Uma delas é que eu compraria uma bicicleta, e eu usaria ela para me locomover. E ponto. Não teria mimimi de morro. De movimento de carros. De falta de acostamento. Ia andar SIM de bicicleta.

No início meus pais não botaram muita fé e tinham certeza que duraria pouco, que eu não agüentaria o tranco (porque sempre fui preguiçosa mesmo rs). Mas, ainda bem, surpreendi a eles e a mim. Minha vida mudou COM-PLE-TA-MENTE. Sério.

Continuava acordando sonolenta e me arrumando rapidamente. Mas ao invés de entrar no carro e dirigir rumo ao insuportável tráfego, eu pegava a bicicleta e ia surfando pelo asfalto.

Desviava de obstáculos, acelerava ou parava, passava entre vãos, subia e descia níveis. Quando chegava no trabalho estava disposta, acordada, com energia.

Passei a me importar cada vez menos com a trabalheira de trocar de roupa, secar o suor, me arrumar de novo para estar num nível minimamente razoável para o ambiente “corporativo”.

O mesmo aconteceu com os olhares atravessados, com a risadinhas e deboches do corredor de gente desocupada, com a encheção de saco de alguns motoristas mal-educados e grosseiros, com o preconceito, com a incompreensão de alguns, etc.

Além da alegria de estar me sentindo “no comando”, vieram outros benefícios como conseqüência. Por exemplo: descobri que aquele era meu estilo de vida, e instantaneamente a sensação de liberdade se tornou indispensável.

Isso fez com que eu repensasse sobre minhas roupas também. Afinal, eu deveria estar confortável se quisesse andar de bicicleta. Portanto também precisava desempenhar atividades profissionais que permitissem isso.

O próximo passo foi decidir que eu buscaria oportunidades futuras de trabalhar em um local que fosse mais flexível quanto ao dresscode e eu pudesse me sentir mais eu mesma. 

 

4. Os tênis

Com isso, vieram outras resoluções: eu usaria tênis. Procuraria tênis bonitos e confortáveis que eu pudesse usar para pedalar, ir ao cinema, trabalhar ou caminhar no parque.

Se você é homem e as mulheres da sua vida são perfeitas damas que se dão bem nos sapatinhos lindos e tipicamente femininos, talvez esse tópico não faça sentido para você. Mas, se você é mulher, e nunca se adaptou muito bem nos tais calçados, sabe do que estou falando.


Eu não submeteria mais os meus pés ou o meu corpo ao sofrimento das sapatilhas e outros calçados desconfortáveis que fingimos ser confortáveis para ficarmos mais a altura do que esperam de nós.

 

É claro que isso foi fortemente impulsionado por um problema de joelho que eu tinha há anos e só depois percebi piorar conforme o sapato que eu usava. Mas foi igualmente libertador.

Confesso que no início foi estranho e difícil. Até hoje tenho que pensar em alguns looks para determinados eventos, de tênis.

Pesquisei bastante, salvei uma porção de referências no pinterest ecomecei a imaginar como isso poderia funcionar sem que eu me sentisse mal, deslocada ou desrespeitada.

Não foi nada absurdo. Eu já tinha bastante clareza sobre o estilo de roupa que combinava comigo. Então, bastaram alguns poucos ajustes e achar os tênis ideais, que tudo se acertou.

É claro, para determinados eventos e ocasiões ainda me obrigo a usar um sapato diferente. Mas não mais salto ou sapatilhas.

Escolho sapatos preferencialmente de couro, duráveveis e confortáveis que combinem comigo, com meu estilo e que eu não precise fingir ser quem não sou.

Nesse mesmo viés veio o desapego do jeans. Continuo usando calça jeans, afinal elas são práticas e praticidade é algo que tem tudo a ver comigo.

Mas dou sempre preferência para aquelas que tenham bastante elastano, sem zíperes ou botões e cintura alta. Essas, por sua vez, perdem para as de alfaiataria que consegui achar no meio do processo.

E o mais legal é ver como o mercado está cada vez mais preparado para atender a demanda. Tenho visto váras marcas e referências femininas assumindo de vez os tênis, fruto de todo o trabalho relacionado ao empoderamento feminino e movimento girl power.

Não estamos mais aceitando esmagar nossos lindos pezinhos em qualquer sapatinho de cristal não. Queremos e merecemos conforto, em todas as ocasiões.

Sem dúvida, vez ou outra ainda rola aquele olhar 43 de reprovação, um desconforto de alguém ao ver uma mulher usando tênis fora da academia ou do piquenique no clube.

Mas isso é normal e a gente vai tirando de letra a medida que entende que é um incômodo completamente irrelevante perto da delícia que é poder andar entre nuvens e não ter que esperar chegar em casa para sentir aquele alívio, relatado e vivido durante tanto tempo.

 

Finalizando: experimente.

Decidi compartilhar com vocês porque realmente essas coisas me salvaram, cada uma no seu tempo e do seu jeito. Elas foram instrumentos essenciais para me levar para um outro degrau. Descobri intuitivamente, meio “sem-querer”.

Ou sej: eu não te conheço, ou a sua realidade. Não sei quem você é, ou os problemas que encara. Mas eu poderia, ainda assim, recomendar que tente algumas dessas atividades. 

Na pior das hipóteses, você terá aprendido algo sobre você e, quem sabe, descubra outras “ferramentas” que funcionem melhor para o seu caso. 

E, por favor, se puderem, compartilhem suas próprias listas. 

 

 

PRÁTICA

Para não deixarmos que minhas maluquices morram na praia, vou buscar sempre deixar uma prática: uma sugestão de algum exercício que me trouxe um bom resultado, fruto do instinto, das leituras ou das conversas com outras pessoas.

  clique para ouvir a música recomendada para essa prática

A prática de hoje é simples e dispensa tópicos: não importa se você está triste, feliz, neutro. Descubra algo novo, tente uma atividade diferente. Sério. É sempre muito bom! E também muito fácil. Ligar o som alto e dançar sozinho(a) em casa já ta valendo. Se possível, tente registrar isso de algum modo. Crie seus botes salva-vidas, porque é algo seu, cujo uso e proveito depende apenas de você mesmo.   
Se quiser, divida sua própria lista, publique sua experiência no instagram e twitter usando #assimpassa, ou nos envie um e-mail! 
 

Continue lendoQuatro coisas que me salvaram

O que nos impede de ser mais feliz?

Desculpe. Eu me desautorizei expressamente de responder perguntas genéricas desse tipo para a sua vida. Porque, infelizmente (será?) eu não te conheço. Mas, para tentar ajudar no caminho tortuoso rumos aos tesouros do autoconhecimento, vou compartilhar minhas descobertas. 

O descontrole da Dolores, do Eufrades e outras coisas aí

Sabe quando sua mãe, qualquer adulto ou seu primo mais velho que se achava o sabichão, dizia que você não era todo mundo? Poisé, nesse caso, você é sim.

Porque todo mundo, até vocêzíssimo, acumula coisas ao longo da vida que vão dando forma a sua existência. Então a gente vai seguindo morreba abaixo, morreba acima, e na retona da vida. E nisso a gente vai catando coisinhas no caminho.

Aqui nem estou falando de coisas propriamente materiais. Estou falando exatamente do que é intangível, mas perene ao longo de todo esse caminho. Vamos chamar essa bolinha — esse emaranhado de coisas confusas que remoemos ao longo da vida, de Dolores

as coisas que acumulamos ao longo da vida costumam direcionar para onde seguimos ou podemos seguir
não entenda mal, o nome não é para ser sugestivo…amo minha Dolores, e espero que você ame a sua também!


Assim, conforme o tempo vai passando, nossas Dolores também se transformam. Aumentam, diminuem, desaparecem e se adequam a momentos e distrações que as levam para longe.

Ainda que a Dolores de cada um deva ser respeitada, até eu sou obrigada a concordar que ás vezes deixamos que ela passe dos limites, principalmente quando se junta com Eufrades, um competente radar-auto-falante-esponjoso.

Pelo menos é assim que eu vejo esses dois amores.

Vamos falar desse romance

Eu sempre fui muito perceptiva a tudo ao meu redor que, por qualquer razão, me interesasse. Então minha Dolores ficou grande e forte rapidinho, assim como eu. 

No entanto, manter o foco nunca foi muito uma habilidade minha. Sempre fui mais acumuladora do que propriamente uma agente de mudança.

tem horas que a gente se surpreende com a gente mesmo


Então eu só ia engordando a Dolores, sem nunca pôr aquela massa de coisas a trabalhar. Mesmo assim (ou talvez por isso), vez ou outra a Dolores ficava tão distante que eu não conseguia ver e a vida parecia mais simples.

Mas meu radar continuava ligado e eu não deixava de ser esponja, absorvendo tudo que via, lia, escutava — reverberando essa “riqueza” de conteúdo dentro de mim. 

Esse competente radar-auto-falante-esponjoso é a quem chamo de Eufrades

Nunca importaram as circunstâncias: Eufrades se comportava sempre um dedicado trabalhador, repetindo continuamente tudo que eu precisava fazer: estudar para ter um bom emprego; emagrecer para ser saudável, aceita e feliz; socializar mais e gastar menos tempo na biblioteca com medo do mundo. 

E não posso dizer que ele estava totalmente errado. 

No entanto, ás vezes, ele ficava sem controle e achava muito coerente me lembrar que eu precisava, urgentemente, planejar toda a minha vida, pois iria ficar para trás. “Já está ficando”, ele dizia ás vezes. Ou: “Não adianta nada ficar olhando pro horizonte…como você vai chegar lá?”.


Então, comecei a traçar planos e sonhos reais

E, com mais ou menos treze anos, resolvi tudo, torcendo para o Eufrades fechar aquela matraca. Decidi, por exemplo, que ter meu próprio apartamento e carro aos 23 – no máximo 24 (porque ne, eu era muito realista) – e trabalhar em um lugar com chão de vidro transparente.

Lá, eu andaria fazendo um toc-toc ritmado e sutil com meu salto; desfilaria com meu conjunto de alfaiataria cinza grafite, meu cabelo bem arrumado e uma pasta de couro elegante e feminina nos braços.

a expectativa e a realidade dos nossos sonhos e a nossa verdasdeira felicidade
até a poderosa Jéssica Pearson estava aquém da minha imaginação, mas digamos que era mais ou menos assim


Quando eu passasse, as pessoas me olhariam com admiração e respeito sem que eu me sentisse constrangida: porque eu simplesmente saberia que era merecedora daquilo, e aí tudo bem.

De manhã eu iria acordar e minha assistente pessoal estaria me aguardando com uma mesa de café da manhã simples e deliciosa, composta de geleias e suco natural; croissant, queijos e frios, ovos cozidos no ponto que eu gosto.

Eu tomaria o café já perfeitamente arrumada, sem um fio saindo do penteado. Maquiagem no ponto. Sairia de casa assim, impecável.

Do mesmo modo, chegaria ao meu posto de trabalho, onde exerceria algum ofício de excelente rendimento, com a competência e alto desempenho que me garantiriam crescer absurdamente e ganhar ainda mais.

Só que não

Nem preciso dizer que, nessa fantasia, quase tudo mudou. Até porque o despertador tocou e a vida real começou a chamar.

No meio do caminho, assim que tive a primeira oportunidade de começar a me tornar aquela pessoa, achei que simplesmente não tinha amadurecido o suficiente e não era digna desse papel ainda

Depois, mais velha, blindada e madura…bem, eu seguia me sentindo igual: com aquele peso incongruente de assumir o conjunto de alfaiataria cinza, salto alto, maquiagem diária, e roupas elegantes de todo dia (e eu sequer sentia que era merecedora de respeito ou admiração).

Algo estava errado (e ficou ainda mais)

Foi o que comecei a perceber, sem me dar conta do quão urgente era eu descobrir. Até que entendi, aos poucos, com um passo de cada vez, as batalhas pelas quais precisava lutar.

O primeiro estopim da guerra que travei dentro de mim foi quando perdi meu pai de uma forma dolorosamente inesperada.

Não quero usar de drama para conquistar mas é inevitável falar da minha trajetória/dos meus grilos e preocupações, sem falar daquele momento: porque eu realmente achei que não poderia suportar.

Mas, como humana obediente e sem a devida inteligência emocional, segui com esmero cada etapa do luto: odiei a vida, o mundo, as pessoas. Tinha raiva. 

Uma sensação insuportável de impotência e “desnecessidade” do existir tomou conta de mim. E é claro: eu não estava disposta a ouvir nada, embora muita gente tivesse tentado me dizer coisas importantíssimas.

Nesse processo, as conversas, o apoio e a troca de idéias que encontrei num grande amigo meu foi fundamental. Voltei a questionar alguns parâmetros, fazer perguntas sobre o mundo, sobre mim mesma.

Sobre a vida. Sobre como realmente não somos e não controlamos nada e como digerir e digerir tudo.

Hoje entendo que tudo realmente acontece por uma razão — além disso, era uma forma de tentar dar algum sentido à  “despessoalidade” daquele homem que eu supunha ser forte o suficiente para ser eterno. 


O primeiro checkpoint é a dúvida

Se existe uma palavra especial para nossos saltos no idioma francês, talvez o impulso para esses pulos também mereça nossa atenção. Você já passou por momentos assim? Um episódio marcante na sua vida?

Se já, é possível que tenha se deparado com dúvidas originárias, e poderia identificar pelo menos uma engrenagem, dentro de você, que passou a funcionar diferente.

Caso esteja passando por algo semelhante, a pessoa que você será depois que tudo se resolver, já não será a mesma. Se você não passou, um dia vai passar. Espero que lembre-se do que vou dizer. 



São os momentos de queda que antecedem o salto. Acredite: por mais difícil que seja, a dor tem um potencial enorme de nos transformar.

E acho que isso ocorre porque normalmente ela nos coloca em dúvida. Cria perguntas que não existiam e reverbera outras que decidimos simplesmente deixar de lado e fingir que nunca existiram – até aquele ponto.

Bom, embora esse não tenha sido o primeiro quatervois da minha vida, certamente foi o primeiro mais doloroso: questionei tudo, duvidei de tudo e, a partir daí, fui reconfigurada

Não entendam errado: não acho que a dor seja o único caminho. Pelo contrário, penso que não deve ser. Mas diante do inevitável da vida, pode ser uma ótima (embora cruel) propulsora da dúvida.

Afinal, duvidar é um dos sinais mais sublimes da nossa evolução: é um momento excelente para dar espaço a outras possibilidades.

Foi assim que uma possibilidade alternativa começou a se desenhar na minha cabeça: um contexto mais ameno, que já tinha permeado minha imaginação em outras ocasiões, voltou para disputar com aquela fantasia urbana de comercial de banco dos anos 90.


Fez-se luz: uma nova imagem começava a se formar

Nela, eu levava uma vida simples, vestia roupas confortáveis, estava de cara limpa, com o cabelo no máximo preso num coque. 

Sentada em uma mesa, eu podia sair de vez em quando para ver o verde, o céu, ouvir os pássaros; observar o mar ou alguma extensão de água e voltar ao trabalho, com um sorriso tranquilo.

Mesmo assim, por mais alívio que essa construção me trouxesse, vi como uma opção bastante ponderada dividir tais circunstâncias: poderia trabalhar na cidade, e depois chegar em casa, num lugar tranquilo e em paz.

Nem preciso explicar como isso estava errado. Mas ainda levei tempo para perceber que essa fenomenal flexibilidade era, na verdade, uma dualidade inviável e frustrante. 

Primeiro porque descobri que nunca estaria pronta para a projeção cosmopolita e urbana: aquele papel não me pertencia, seria só isso, um personagem.

Segundo porque comecei a entender algo que, para mim, hoje, faz muito sentido: não dá para ser metade autêntico e se dividir assim torna tudo ainda mais difícil.


Somos um só. E insistir em ir para dois caminhos tão opostos pode nos dividir tanto, a ponto de perdermos um pedaço da gente.

sobre autenticidade - trecho Lucifer S04E06 - sábia Dra. Linda
 sábia Dra. Linda


Era hora de dar uma esticada na Dolores

Então, quando notei que precisaria decidir, mas realmente não enxergava a opção “certa”, escolhi revisar meio sem-querer mesmo, mesmo no automático, tudo que eu era.

Peguei Dolores com carinho. Primeiro achei a pontinha mais recente e fui desenrolando todo o resto até achar a ponta mais antiga. 

Queria olhar meu passado com a nova perspectiva, descobrir de onde eu tinha tirado tantas ideias sobre quem eu seria ou deveria ser, na tentativa de finalmente encontrar meu pedaço mais importante.

Até que, passeando pelos nós firmes da Dolores e andando pela cidade, pensei em como eu detestava concreto, prédio, barulho, buzina, cinza. Por outro lado, olhava para o céu e me sentia livre. 

Foi mais ou menos assim que passei a descobrir a vida e a cidade de outros jeitos, me deslocando de bicicleta na maior parte das vezes. O vento no rosto, a fluidez de tudo, o mundo me pertencendo por um segundo. Eu, só eu, fazendo o caminho que quisesse, na velocidade que escolhesse.

E, finalmente, tive certeza: aquela primeira fantasia nunca foi real, nunca foi minha.  [imagine um mindblow agora].

Pode ter vindo de algum filme, novela. Devo ter visto alguma mulher poderosa que eu admirava — porque mulheres poderosas sempre fizeram parte da minha vida.

Talvez, por acaso, ela usava como armadura o terninho cinza, a maquiagem e o salto alto, me levando a associar as duas coisas; poder e estilo de vida cosmopolita. Poder e sucesso. Sucesso e felicidade.

Ou, quem sabe, nem tenha sido assim a construção desse formato de vida ideal. Vai saber. Não posso dizer de onde veio a noção de que aquelas coisas eram as minhas coisas, as coisas que eu desejava. Nem importa mais, porque depois eu soube.

E descobri que o caminho seria difícil de qualquer jeito. Mas poderia ser um pouco menos pesado. Decidi seguir tentando superar os percalços certos: ilusão por ilusão, escolho a minha. 

Recapitulando…

 

tire os entulhos do seu caminho que te impedem de ser mais feliz

 

Embora essa seja uma representação precisa da minha jornada, ao longo das conversas e leituras percebi que existe sim uma ocorrência predominante nos fatores que nos levam a ser menos felizes e na sequência de checkpoints que acontece no processo que vai do ponto A (completa ilusão e piloto automático) ao ponto B (entendimento, aceitação e ação consciente).

Fatores que nos afastam do que buscamos

  • acúmulo de resquícios mal resolvidas que constrem nosso sistema de crenças;
  • projeção superestimada do instinto de defesa que nos leva a autosabotagem;
  • resistência em confrontar e aceitar verdades sobre nossa vida;
  • construção de fantasia projetada como ideal, segundo expectativas de terceiros.

Sequência de checkpoints

  1. o processo de dor e dúvida vivido sem distrações;
  2. a interpretação dos problemas como campo fértil de oportunidades;
  3. risco de regredir com tentativas de esquemas de negociação com a realidade;
  4. aceitação do que podemos e não podemos controlar e a reação diante do inevitável;
  5. reconfiguração do nosso sistema de crenças e das verdadeiras possibilidades.

 

PRÁTICA

Para não deixarmos que minhas maluquices morram na praia, vou buscar sempre deixar uma prática: uma sugestão de algum exercício que me trouxe um bom resultado, fruto do instinto, das leituras ou das conversas com outras pessoas.

clique para ouvir a música recomendada para essa prática
Por isso, gostaria de propor algo nem seu Eufrades mais atento ou sua Dolores mais enloquecida poderia negar. Ah! Se tiver postits talvez eles sejam úteis. 
1. Pegue uma folha e divida em três partes/colunas. Em uma escreva Felicidade (1) Dolores (2) e Eufrades (3) – ou seu próprio nome para cada um deles. (ou baixe o arquivo prontinho, disponível no final da página)

2. Na primeira coluna responda à pergunta: “O que realmente é felicidade pra mim?”. Na segunda coluna escreva tudo aquilo que te deixa desconfortável, fruto de episódios anteriores que não foram devidamente processadas e resolvidos (coisas que as pessoas te disseram, que você viu, que sentiu, etc). Na última coluna escreva seus pensamentos mais persistentes (tanto os que te incomodam quanto os que não são um problema aparente para você) e que, na grande parte das vezes, guia suas decisões, seus objetivos, etc.  

3. Analise cada um dos elementos das colunas e veja se existe algum tipo de relação entre eles. Se puder ou quiser, você também pode compartilhar com alguém de sua confiança, com quem poderá falar a respeito e facilitar no processo de insight.

4. Com bastante honestidade, defina pelo menos um e no máximo três elementos que estão sendo obstáculos no caminho do tipo de felicidade que você busca e definiu na primeira coluna. Observação importante: pode ser, que nesse momento, você até perceba que precise alterar o que escreveu na coluna 1: tudo bem. O importante é buscar a verdade. 

5. Deixe esse material guardado em algum lugar que você possa revisitar com alguma frequência e faça os ajustes que considerar necessário ao longo da sua evolução.
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