A Missa da Meia Noite: uma análise da humanidade

Como a Netflix conseguiu unir Bev, Riley e nós num roteiro para lá de agonizante. Entenda mais e descubra se vale à pena assistir à Missa da Meia Noite
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Vamos lá: você acha que é uma pessoa boa?

Olha… uma galera lá de Crockett Island também acha. Por isso escolhi começar com essa pergunta: não vejo maneira melhor de falar sobre a série do Netflix. Inclusive, vale dizer que ela esteve entre as cinco mais assistidas no Brasil em 2021.

Embora essa não seja uma análise técnica, a minisérie oferece insights valiosos sobre a humanidade.

A verdade é que você pode escutar coisas bem diferentes sobre “A Missa da Meia Noite”. Mas se te peguei desprevenido ou ficou na dúvida sobre como me responder, esse artigo é pra você.

E se não teve dúvida nenhuma, com certeza esse artigo é pra você.

Ok, mas será que vale a pena ver “A Missa da Meia Noite”?

A resposta pra isso é a mais odiada por 98% da humanidade: depende.

Como não sou (totalmente) trouxa, vou tentar explicar do único jeito que consigo pensar: falando sobre a série.

Particularmente, vejo como uma história quase fabular, capaz de nos lembrar daquilo que costumamos esquecer. Mas, ao invés de uma lição central, ela pode te carregar para um vórtex de percepções – o que eu considero sempre válido.

Cheia de falas extensas, a série vai levando a gente pela beleza e caos das perspectivas dos personagens antagônicos, que nos ensinam sobre: vícios, pontos cegos, orgulho e intolerância.

E é por isso que insisto nas obras de Mike Flanagan – ele tem esse jeitinho Stephen King, sabe?! De usar narrativas horripilantes para nos levar às profundezas de nós mesmos.

Mas confesso que fiquei na dúvida se encararia “A Missa da Meia-Noite”. Até que me rendi à tentação de, como n’“A Maldição da Residência Hill”, identificar elementos cheios da sabedoria que um bom drama costuma entregar, ainda que mascarado por outros estilos.

Ah! Só pra contextualizar, o roteiro… digamos que se baseia em um homem condenado no mínimo três vezes.

Primeiro, pelo desejo de escapar de uma vida medíocre.
Segundo, pela fantasia de que libertar-se do lugar é libertar-se da ideia.

Até, que finalmente, ele chega à terceira. Não legalmente, pelo homicídio. Mas pela mente: a culpa de ter matado alguém inocente.

É assim que Riley acaba voltando para onde passou a infância toda sonhando sair: a pequena ilha de Crockett. Abandonada e remota, com seus 127 habitantes permanentes, a cidadezinha tem atividades que se baseiam num cais e numa igreja.

Então, mesmo se você, como eu, não tem o terror como gênero preferido, eu diria que vale a pena assistir sim.

Acho que essa coisa de “gênero” nos priva de óticas que estão além do que vemos, de aprendizados que transcendem simbolismos óbvios que definem as categorias das histórias.

A “Missa da Meia-Noite”, por exemplo, embora com uma premissa assustadora, mais do que medo, trouxe reflexões profundas.

Não se trata de Riley nem de monstros. Mas, certamente, de humanos.

Então, vamos para o primeiro ponto.

Bev, humanidade, loucura e nossas escolhas mais difíceis

A querida Bev da Missa da Meia Noite. Fofa!

Eu gosto da ideia de que ninguém é intrinsecamente bom ou mal. Mas, no fundo, é difícil ter certeza sobre isso quando não conhecemos a verdade mais profunda sobre cada um.

Além disso, pegando pela história da série, antes mesmo do surgimento do novo padre de Crockett (interpretado com maestria pelo Hamish Linklater – o eterno Matthew, de Christine) e da revelação de alguns mistérios, nos defrontamos com a personificação mais assustadora do mal.  

A gente fica tipo: será que humanos se inspiraram na mitologia de monstros ou se originaram neles?

É Bev quem me traz essa dúvida e mais me dá arrepios. Porque mesmo fictícia, ela pode ser encontrada no nosso mundo

Ela até mostra potencial para carregar estereótipos suavizados. Sabe? Da megera cujo comportamento se enraíza em algum trauma ou dor pungente. Mas Bev não se preocupa com nenhuma justificativa:

sob a ótica dela, ela não tem nada de que se justificar. Ela é pura e terrivelmente incompreendida em sua infinita e rigorosa bondade.

Quem se justificaria de algo assim? Certamente alguém que carrega segredos, pecados. Com certeza, não ela. Porque ela ta todinha ali. Suas verdades se resumem ao escopo da tela. 

Bev incorpora parte do que tememos no mundo: mais do que os outros, talvez, a gente mesmo.

Ela reflete a nossa tentação em enxergar as coisas sob o prisma que nos é mais conveniente (e os desdobramentos terríveis que isso pode trazer). Seus atos são tão cristalinos que nem a ironia, o cinismo ou a hipocrisia são capazes de disfarçar. Para mim, é tão difícil absorver a maldade de Bev, que prefiro enquadrá-la no âmbito da loucura.

Não dá nem pra saber se não foi por isso que criamos o termo: para nos afastarmos de pessoas capazes de coisas tão terríveis. Se torna uma questão de eles, e nós.

Tipo:

“Bev é tão monstruosa e determinada a ser má que só pode ser louca.” – pensamos. Afinal, as pessoas não são assim. Pessoas são boas. Bev é que é monstruosa. Sua humanidade foi consumida pela loucura. Eu não sou assim.”


Olha… não tenho certeza de nada – senão de que, sob a ótica mista da ciência, da psicologia, da filosofia e teologia o debate seria, no mínimo, interessante. Mas sim: é perturbador pensar nisso.

Consumida pelo orgulho e pela noção de superioridade que faz de si, ela é capaz de tomar as decisões mais absurdas sem hesitar. Só que não aleatoriamente.

Nem Bev é tão corajosa assim. Ela se esconde por trás de um livro. De escrituras que sabe serem consideradas sagradas. De palavras escritas por pessoas que ela tem certeza encarnar.

Ninguém pode ousar contrariar o que ela diz ou faz, porque não é ela que diz ou faz, ela só está transmitindo a mensagem. Não importa o que aconteça, ela está sempre com o mesmo escudo:

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Bev, a Anja. Bev, a Santa. Bev, a impecável. A escolhida.

“Está na Bíblia, você não vê porque não é tão soberano quanto eu, oh pecador. Mas deixe-me mostrá-lo com minha infinita sabedoria sobre as coisas não-mundanas.”

Ora condescendente, ora agressiva, o que muda é o tom, nunca a mensagem.

E é assim, emBEVecida (não resisti) pelo êxtase de uma suposta salvação, de ser escolhida e, depois, pela certeza de coisas mais… líquidas, ela vai se destilando na pequena, mas altamente corruptível comunidade de Crockett.

Odiamos Bev, além do fato de ela ser má, porque sabemos que todos nós somos tentados à seguir por aí em algum momento. Porque, no fundo, podemos nos perguntar quantas vezes incorporamos algum tipo de mal.

Talvez algumas pessoas sejam simplesmente más.

Talvez todos nós sejamos um pouco, quando buscamos encontrar ou dar razões para nossas pequenas atrocidades.

E, aqui entramos em outro ponto relevante.

As ilusões causadas pelos vícios e pela aversão à autorresponsabilidade

A culpa maior que qualquer julgamento

É fácil pensar que ninguém, uma vez contaminado, pode resistir.

Que o veneno, feito da maldade, das falácias, do ego, da fofoca, do julgamento social, do preconceito e da intolerância

é infalível.

Uma vez tocado, se apossa de você.

Essa noção fica bem clara quando Riley, (na atuação hipnotizante do Zach Gilford) apresenta o álcool e suas conseqüências abusivas, não como algo de sua responsabilidade, mas como algo externo a ele.

Muitas vezes pode ser tão desafiante assumirmos inteiramente o mal que causamos, que optamos por projetá-lo: foram eles, a culpa foi dela, é porque você.

Na explicação dele quando ‘submetido’ à substância, se torna outra pessoa.

Em qualquer mitologia – e em outros discursos de pessoas viciadas – encontramos diversos relatos onde essa ideia se repete: a da posse.

Algo misterioso, intangível ou inexplicável que nos assola.

Que toma conta de nós de forma tão cruel, rápida e mordaz que nos incapacita – física, mental ou emocionalmente a resistir.

Fomos vitimados. Não fizemos nada, nem a escolha de ‘deixar’ que aquilo acontecesse.

Em uma das cenas mais marcantes, no final do segundo episódio,Rileychega a flertar com o conceito quando explica ao padre uma abordagem sobre o alcoolismo.

Ele diz:

“O Riley que surgia quando eu bebia, ele era ruim. Ele era egoísta, indiferente e arruinou minha vida.”

Ainda que a licença atenda ao roteiro, existe a noção de que alguém, quetomava conta dele, era capaz de fazer as coisas mais horríveis usando seu corpo, sua voz, seu rosto.

E que, depois, facilmente o abandonava para que ele lidasse sozinho com as conseqüências das ações que tomou como sendo o próprio Riley.

Então, ele continua:

“Sempre achei que nos daríamos bem. Aprenderíamos a viver um com o outro, porque ele não me faria mal. Não a mim. Eu o alimentava, ele não me faria mal. Acordei um belo dia e ele havia matado alguém.”


Mas, tão logo se depara com o olhar do padre, mostra o quanto aprendeu. E conclui:

Eu matei alguém.”

Riley não ganharia nem perderia nada com essa confissão voluntária de responsabilidade. Com a demonstração de que, finalmente, entendeu.

De que realmente reconhece que não era outra pessoa, mas ele mesmo, quando matou alguém.

Por isso, vejo este como o primeiro e mais importante marco da história.

Mesmo que ele já se penalizasse e carregasse com tanta clareza a culpa.

Mesmo que já tenhamos visto ele assumindo a responsabilidade perante a justiça e concluído a pena dos homens – foi a primeira vez que presenciamos ele falando em voz alta sua responsabilidade.

É um momento de clareza onde entendemos que Riley pôde tirar algo de tudo. Ele saiu da cadeia e embora vejamos ele aprisionado, somos conduzidos a acreditar que ter ganhado consciência poderia libertá-lo.

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Depois fica claro que, ali, é consumado o final de um ciclo. Mais precisamente quando Riley se vê transformado, e entende que lhe restam poucas escolhas.

No barco, com Erin, sentindo seu novo vício, ele nos revela a escolha menos óbvia.

Ainda que tenham se esforçado em convencê-lo que as conseqüências do seu desejo mais recente fossem benignas, ele as dispensa e se torna capaz de resistir à promessas tentadoras.

A mesma liberdade de escolha que levou Riley a matar uma pessoa inocente no passado, também foi capaz de lhe ajudar a discernir o que era errado do que era certo, em qualquer perspectiva saudável.

Isso se repete quando o resto da cidade se depara com um dilema muito parecido com o dele e, de muitos jeitos, de pessoas doentes.

Não importa o que façamos, ou nosso passado, não importa a condição em que nos encontramos agora: as escolhas estão sempre lá, seja para nos salvar, seja para nos condenar à circunstâncias irremediáveis.

Acima de tudo, “A Missa da Meia Noite”, nos fala sobre nossa realidade.

Onde a religião, o pecado, o crime, nomes, palavras, a aparência ou a vestimenta podem ser infinitamente pequenos perto da nossa bússola interna.

E é claro: várias circunstâncias impactam essas escolhas e parecem nos conduzir com maior magnetismo para um lado ou outro.

Talvez não existam, realmente, pessoas, mas escolhas intrinsecamente más e boas.

E, a cada minuto, dias, semanas, momentos, somos presenteados com a oportunidade de fazê-las.

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E então, eu te pergunto: você é uma pessoa boa?


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